sexta-feira, 25 de novembro de 2011

(Des)acostumar-se

Hoje nossa professora de Histórico Cultural nos presenteou com um lindo texto para encerrar a matéria!

EU SEI, MAS NÃO DEVIA

Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. 

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(Marina Colasanti)


Ela dedicou-nos o texto, desejou que nunca nos acostumemos com certas situações por comodismo ou pressão social...
Pois bem, dedico não o texto, mas toda a profundidade que ele carrega à uma boa parte de minha família e para todos aqueles que um dia sugeriram que eu desistisse, que 'deixasse quieto' ou esquecesse.
Desejo que entendam e respeitem o fato de eu não me acostumar com apartamentos, janelas fechadas e quintais cimentados. Que não me acostumo com mentiras (inclusive as minhas próprias), com arrogâncias e todos os tipos de palavras que machucam os que amo. Que não me acostumo com o passado que tive, e que perdoar nunca será esquecer. Que não me acostumo com quem não aceita ou simplesmente convive com minhas diferenças.
Que não me acostumo com corrupções, invejas e discriminações. Que não me acostumo com as bitucas de cigarro, copinhos de plástico e afins que jogam no meio da rua, diante de meus olhos. Que não me acostumo com exemplos e morais passadas, puras enganações. Que não me acostumo com certas ausências e muito menos com presenças forçadas. Que não me acostumo com as falsas amizades e falsos amores. Que não me acostumo com a brutalidade e capacidade dos meus próximos em magoar. Que deixo-os sobretudo livres para não se acostumarem comigo!!! Que eu mesma já não me acostumo com o que tenho de mim, pois a cada dia, sou-me outra, sempre reconstrução!
 (Obrigada professora)

2 comentários:

  1. Texto toante e inspirador... mt bom

    "Anoitecer por dentro, deixar ir o que me leva, deixar para trás o que levo comigo.
    Ver no céu uma estrela que equivale aos pontos luminosos que brotam no chão." Reconhece essa escrita, Mary?
    Quero mais post seus!!

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